O que está por trás do boom dos festivais (e por que isso pode não durar)
O Brasil nunca teve tantos festivais de música como agora. Mas por trás dos palcos, dados e tendências apontam para um futuro que exige maturidade e atenção.
No mercado dos festivais, algo mudou. O que antes era sazonal, pontual e desafiador virou pauta estratégica, investimento de grandes marcas e destino turístico. Em 2024, foram mais de 400 festivais realizados no país — o maior número da história.
Mas será que estamos mesmo vivendo uma era de ouro? Ou há sinais de que essa euforia pode virar bolha?
O mercado antes da pandemia: um setor em busca de estrutura
Antes da 2020, o mercado de festivais no Brasil já mostrava força — mas também uma certa estagnação. Grandes eventos se consolidavam, mas o calendário era concentrado em poucos nomes, em grandes centros urbanos e com formatos tradicionais.
A pandemia escancarou as vulnerabilidades do setor e o vimos agora, em 2024, não foi uma simples retomada. Estou falando de uma reconstrução com outros pilares, ou seja, descentralização, diversidade geral e propósito.
O boom dos festivais é visível, mas o que o sustenta é bem diferente do que nos trouxe até aqui. É uma reconfiguração.
O Boom dos festivais
O boom dos festivais é muito real, como eu contei no capítulo 6 do Guia de Tendências 2025.2 do EstrataGema. O que está impulsionando esse crescimento? O crescimento que vemos hoje é resultado de uma combinação rara de fatores sociais, culturais, econômicos e comportamentais que, juntos, criaram um terreno fértil para essa nova fase dos eventos ao vivo.
A volta da experiência ao vivo
A retomada pós-pandemia trouxe um desejo coletivo por experiências físicas, compartilhadas, emocionais. Estar em um festival virou símbolo de liberdade, cura e reconexão.
Descentralização da produção
Plataformas acessíveis, redes sociais segmentadas e a democratização das ferramentas de produção permitiram que novos produtores e coletivos ocupassem o espaço — trazendo diversidade de formatos, públicos e territórios.
Entrada massiva das marcas
Mais de 800 marcas patrocinadoras investiram em festivais em 2024. Coca-Cola, Amstel e Bud lideram, mas a lista é ampla — e o festival virou canal central de ativação emocional e construção de marca.
Eventos como estratégia de branding
O festival deixou de ser ativação pontual e passou a ocupar lugar estratégico dentro dos planejamentos anuais de grandes empresas. Marcas buscam agora construir vínculo, não só visibilidade.
Três sinais que mostram que o mercado está mudando
Festivais estão deixando de ser produto e virando marca
Alguns eventos já operam o ano inteiro com conteúdo, comunidade, collabs e presença digital. Eles não querem mais ser lembrados apenas pelo lineup, mas pelo que representam.
O público está mais exigente — e mais diverso
Não basta ter grandes nomes no palco. A experiência precisa ser completa: acessibilidade, curadoria estética, segurança, alimentação consciente e ativação com propósito.
A experiência é o centro da entrega
Os festivais mais bem avaliados em 2024 não foram os maiores — foram os que cuidaram melhor da jornada do público: da entrada ao último acorde.
E quando o hype vira bolha?
O crescimento do mercado de festivais é inegável. Mas nem todo crescimen sustentável. E nem todo hype se transforma em legado, não é mesmo?
Nos últimos dois anos, o setor assistiu à explosão de novos eventos — muitos deles com excelente curadoria, proposta autêntica e entrega surpreendente. Mas também vimos uma onda de festivais sendo cancelados em cima da hora, lineups reformulados às pressas e crises financeiras silenciosas que quase ninguém publica no feed.
A verdade é que estamos flertando com a lógica da bolha: uma expansão acelerada, impulsionada por entusiasmo, dinheiro novo e um público sedento, mas sem os alicerces estruturais para suportar essa velocidade a médio prazo.
Alguns sinais disso já estão claros:
Festivais anunciados sem patrocinador fechado, apostando em vendas que não se confirmam
Lineups repetidos, com os mesmos artistas rodando 6 ou 7 festivais em sequência
Calendário saturado, com eventos concorrendo entre si em finais de semana consecutivos
Falta de equipes capacitadas para dar conta da operação em escala, gerando burnout e rotatividade alta
Pressão por experiências “instagramáveis”, que muitas vezes custam mais do que entregam
Segundo dados extraoficiais apurados por players do mercado (produtores, agências e artistas), pelo menos 15 festivais médios e grandes foram cancelados no Brasil entre 2023 e o primeiro semestre de 2024 — alguns sem nem comunicar o motivo ao público.
Por que isso importa?
Ao contrário do que parece, não é só o público que se frustra. A credibilidade do setor como um todo é afetada.
Artistas deixam de confiar. Marcas se retraem. Fornecedores exigem pagamento antecipado. O que era celebração vira tensão.
A euforia inicial que moveu o mercado em 2022 e 2023 começa a dar lugar a uma ansiedade silenciosa: a de entregar mais do que se consegue sustentar. A lógica do “crescer por crescer” ameaça engolir os próprios valores que tornaram essa nova onda tão potente.
O hype é uma faísca. Mas sem estrutura, propósito e consistência, ele apaga rápido.
O que vem por aí?
A partir dos dados do Mapa dos Festivais 2024, da observação do mercado e da minha vivência prática, aqui vão seis tendências fortes para os próximos anos:
Nos bastidores, a gente sente os ventos mudarem antes da tempestade. E alguns movimentos já apontam tendências para os próximos anos:
Curadorias mais segmentadas e posicionadas
O tempo dos festivais “para todo mundo” está ficando para trás. Só os gigantescos vão existir nos próximos anos, pois crescem os eventos com voz própria, estética definida e diálogo claro com tribos — musicais, sociais ou ideológicas. Um olhar mais nichado sobre o conceito, música e experiências é um oceano azul.
Interiorização e novos territórios
Com a saturação dos grandes centros e os custos crescentes, festivais começam a ocupar outras cidades. Isso é estratégia, inclusão e até sobrevivência. E é daí que nascem poderosos festivais que servirão de "categoria de base" da música brasileira dos próximos anos.
Dados como insumo estratégico
Quem produz hoje tem nas mãos mais do que ingressos vendidos. Tem dados valiosos que ajudam a entender comportamento, ajustar rota e entregar mais valor a marcas e público. O digital virou aliado — e não inimigo — do ao vivo. Da biometria facial à compra de produtos antecipadamente via app, por exemplo, vamos ter muitas oportunidade à frente de quem produz.
Experiência como protagonista
Muitos festivais esgotam ingressos antes de anunciar o lineup. Isso diz tudo. A narrativa visual, o clima, o propósito e a sensação de “fazer parte” pesam tanto quanto o som que vai tocar. O festival virou lifestyle, e isso impacta tudo: do planejamento às ativações.
Sustentabilidade e acessibilidade como critério — não como extra
Se o boom trouxe potência, ele também cobra maturidade. Não dá mais para pensar só no próximo evento — é preciso pensar no legado. Impacto ambiental, responsabilidade social e respeito à pessoas com deficiência não são tendências: são obrigações. O mercado amadureceu, e a régua subiu.
Big turnês
Ainda vamos ver muito os festivais de um artista só nos próximos anos. Um exemplo claro disso é a Tardezinha, que em 2023, fez uma Big Turnê por estádios do Brasil e que voltou em 2025 maior, com mais público, mais estádios, mais patrocínios, e por aí vai! Com certeza teremos Tardezinha em 2027, 2029, e até quando o Thiaguinho conseguir cantar. Nós ainda vamos começar a ver com outros artistas fazendo o mesmo no Brasil.
E se olharmos mais adiante?
Imagine um festival em 2075:
Curadoria com apoio de inteligência artificial emocional
Ingressos digitais que destravam experiências personalizadas
Realidade aumentada e sensorial para quem está longe
Estruturas com impacto ambiental regenerativo
Pode parecer distante. Mas os primeiros sinais já estão aqui. E quem estiver atento, já está construindo esse futuro.
O que fica disso tudo?
O setor de eventos pulsa, tropeça, reinventa e sobrevive — como a própria música que o move. Podemos estar vivendo uma bolha de festivais e o desafio agora é garantir que essa expansão se sustente, com responsabilidade, consistência e propósito, para que o hype vire legado, o boom se torne estrutura e não uma bolha prestes a explodir.
O mercado de festivais é hoje uma das plataformas culturais mais vibrantes do Brasil. Ele conecta marcas, artistas, públicos e territórios. Mas para que esse movimento siga crescendo, será preciso menos impulso — e mais intenção.
O futuro vai aplaudir quem constrói com profundidade. Não quem só grita mais alto.
"Pressão por experiências “instagramáveis”, que muitas vezes custam mais do que entregam."
Isso aqui me pegou porque é uma dissonância cognitiva muito zoada que parte do público acaba tendo. O que é experenciar o "instagramável" quando a vida é ao vivo? Aí fico com outra dúvida: essa perspectiva é fomentada por conta do padrão dos materiais de promoção ou também por conta de uma geração que prioriza validar a vivência selando em fotografias e vídeos nas redes sociais ao invés de apenas viver o que os festivais estão ali entregando no ao vivo?
Excelente análise! O The Town de 2023 foi último festival que eu participei. Entre ele a o Lolla de 2014 - 2017 tem um gap enorme em qualidade e experiência do usuário.
Primeiro que um espaço que era feito pra unir virou sinônimo de exclusão: cada vez mais ingressos VIPS e Lounges com privilégios e vantagens, segundo pela poluição de marcas para dar brindes fajutos com filas enormes e humilhantes.
Em 2023 percebi que o povão é o SKU menos lucrativo da empresa, ele focam no premium e gastam rios de dinheiro com VIP do VIP pra influencers. A percepção que tive é uma necessidade constante de firmar a falta de conforto do ingresso geral para que a percepção de valor do Premium seja destacada.
A única coisa boa que teve de lá pra cá foi a melhora nos banheiros. Não tenho vontade nenhuma de ir em outro festival e seu texto trouxe vários motivos que eu concordo demais!
Por sinal, até citei os festivais em um texto que fiz, falando que tudo tá ficando pior (de propósito) e mais caro. Se quiser conferir: https://conversas.substack.com/p/consumo-pagamos-mais-levamos-menos